A mão que afaga o Google é a mesma que afasta os livros.

Isadora Lira
4 min readAug 14, 2020

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O ministro da economia Paulo Guedes encaminhou uma reforma tributária que, dentre vários pontos, abre caminho para taxação de impostos sobre livros. A proposta é de unificar a cobrança do PIS/Pasep e do Cofins em um novo imposto com o nome de Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). A alíquota deste tributo seria de 12%, o que pode representar uma quantidade maior do que o recebido por muitos autores. Na mesma semana, o The Intercept publicou uma matéria sobre como o governo Bolsonaro entregou mais de R$ 11 milhões ao Google, entre maio de 2019 e julho de 2020 (assim como pagou publicidade a outras empresas de telecomunicações como SBT, Record e Globo).

Mas o que tem a ver taxação de livros com o Google?

Muitos dos espaços de socialização digital (e não só) são mediados por dispositivos e algoritmos, muitos destes com funcionamento opaco, porém determinantes na hora de decidir qual tipo de conteúdo chega até você e qual não (escrevi sobre neste artigo). O resultado que aparece quando você realiza uma busca, ou a publicidade direcionada em alguma mídia social pode até parecer que leu o seu mais íntimo pensamento, no entanto, o impulsionamento de conteúdo pode ocorrer independente do seu perfil de usuário.

Afinal, uma big tech como o Google tem a capacidade de priorizar resultados de pesquisa com base em uma variedade de tópicos, bem como promover seus próprios interesses comerciais.

Anteriormente mencionei que o governo Bolsonaro destinou milhões de reais de publicidade para o Google, bem como a outras empresas de comunicação. Entretanto, o Google tem muito mais diferenças do que semelhanças do que empresas de telecomunicação. Você já deve saber, mas cabe sublinhar: o Google tem acesso sem precedentes à coleta e fornecimento de dados em uma variedade de plataformas, em mercados não regulamentados.

O Google não é público. E, cada vez mais, penso ser necessário enfatizar isso. Não é um espaço público, é uma empresa privada que media um sem-número de atividades de bilhões de pessoas diariamente, inclusive de modo indireto, que se faz presente em espaços de socialização, de educação (escrevi sobre o avanço da Google na educação pública aqui), de saúde, de produção de conhecimento, criando assim, novas categorias de informações a serem coletadas e posteriormente transformadas em produtos, para seguir esse processo. E, novamente, uma empresa privada.

Em relação às muitas denúncias de resultados enviesados das buscas no Google (por exemplo, quando o buscador apresentava resultados pornográficos para o termo “mulheres negras”), se argumenta que isso acontece porque, de alguma forma, a responsabilidade é dos usuários. Por conta do comportamento de uma maioria de usuários o Google apresenta esse conteúdo, como se a empresa não tivesse qualquer tipo de controle.

É comum a utilização do buscador como uma espécie de enciclopédia ou biblioteca (como o Scholar), mas, como indaga Safiya Noble, professora de estudos de informação da Universidade da Califórnia (UCLA), no seu livro Algorithms of Oppression: “Faz sentido terceirizar todas as nossas necessidades de conhecimento para mecanismos de pesquisa comerciais, especialmente em um momento em que o público está cada vez mais dependente de buscadores em vez de bibliotecas, bibliotecários, professores, pesquisadores?”.

O buscador apresenta uma série de links como resposta a uma determinada pergunta ou combinação de palavras-chave, contudo, não há uma devida contextualização ou panorama daquela problemática. Essa tarefa demanda a leitura crítica daquela situação. E no caso de resultados sobre minorias étnicas ou grupos historicamente marginalizados?

Por mais refinados que sejam os algoritmos, por mais harmônica que pareça a relação entre o que você procura e ela apresente, não supre a necessidade de bibliotecas, centros de pesquisa, museus.

Além disso, o que acontece quando, cada vez mais espaços de organização política, produção de conhecimento, de acesso à informação, são modulados e apresentados em uma plataforma publicitária? E com o bônus de que outras fontes de informação, como os livros, têm seu acesso cada vez mais dificultado. Quero encerrar com uma provocação feita por Letícia Cesarino, professora de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina: “estamos cada vez mais fazendo política, justiça, ciência em ambientes cuja arquitetura é feita 100% em princípios de marketing.” (Terminei com um RT? Terminei com um RT. É isto).

Conteúdo relacionado

Algorithms of Oppression — Safiya Noble.

Também tem vídeo da Safiya falando sobre isto a pesquisa aqui.

Quer começar a testar alternativas a todos os serviços maravilhosos que a Google oferece? Aqui tem uma lista completa, de e-mail à playstore, passando por buscador, navegador, sistema operacional e afins.

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Isadora Lira

Jornalista e pesquisadora. Escrevo sobre o que me incomoda, quando posso (porque preciso). SAC: yzdrrr@protonmail.com