“As meninas não ficam mais quietas. Elas querem a mudança agora” —

Isadora Lira
5 min readSep 11, 2019

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Elas que Lutem: Entrevista com Heloísa Buarque de Holanda

Com 80 anos de idade, mais de 40 livros publicados, a escritora, ensaísta, professora, crítica literária, Heloísa Buarque de Hollanda tem se dedicado a pesquisar sobre os movimentos feministas no Brasil. Sua primeira antologia publicada 26 Poetas Hoje (1976), tornou-se um marco para os estudos sobre poesia marginal na literatura brasileira. Só esse ano publicou o Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais, com textos de Judith Butler, Audre Lorde, Donna Haraway, Nancy Fraser, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro e Paul B. Preciado; e Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e Conceito, com textos e palestras de Heleieth Saffioti, Maria Betânia Ávila, Jacqueline Pitanguy, Branca Moreira Alves, Constância Lima Duarte e também de Sueli Carneiro e Lélia Gonzales. E já adianta que ainda esse ano será publicado o último da trilogia.

Entrevistei Heloísa em Aracaju e conversamos sobre perspectivas dos estudos feministas no Brasil. Heloísa se identifica como uma feminista das antigas, mais precisamente da terceira onda, o momento no qual o movimento pauta como a intersecção de opressões sistêmicas atingem diferentes mulheres de modos distintos. A identificação por ondas orienta no que diz respeito aos pontos de partida das discussões, e não às pautas fechadas ou períodos históricos engessados. Existem autoras que identificam a terceira onda a partir da década de 80, outras a partir de 90. Como a Rebecca Walker, que publicou o manifesto Becoming the Third Wave (Tornando-se a Terceira Onda), no começo dos anos 90[2]. Vale salientar que tal identificação por ondas em geral se baliza no movimento feminista estadunidense.

É nisso que Heloísa tem trabalhado recentemente: escrever sobre o feminismo durante as décadas de 1960 e 1990 no Brasil “Não tinha mídia na época para divulgar” e principalmente durante o período ditatorial, afinal de contas. “Haviam passeatas, haviam feministas no Brasil, mas que estavam disfarçadas. Tem muita história a ser contada”, disse.

A escritora integrou a primeira mesa plenária do Seminário Internacional Mulher e Literatura, realizado entre os dias 14 e 16 de agosto de 2019. Durante sua apresentação na primeira mesa plenária, Heloísa falou sobre o Pensamento Feminista e apresentou um panorama sobre as diversas manifestações do Brasil.

Quando você se “assumiu” feminista?

Nos anos 80. Já havia forte no Brasil o movimento negro, mas não havia o de mulheres, engraçado, né? O índice de mulheres naquela época, nos anos 60, 70 e 80 que se assumiram feministas fora do país é enorme. Aqui você via uma dissimulação nos confrontos, nas relações de poder. Era muito difícil ser feminista naquela época.

Você fala que é uma feminista das antigas e que as feministas “de hoje” são pragmáticas. Qual é a diferença entre essas práxis?

A diferença de práxis era que a gente era política. Política no sentido de fazer projeto para acontecer depois. Então a gente tinha essa coisa teleológica. A luta feminista vai acabar com a opressão um dia. Agora não tem mais essa. As meninas não tem esse tempo. Elas querem agora. Elas querem meu corpo, minhas regras, agora. As meninas não ficam mais quietas. A gente ficava. Para falar a verdade, eu nem sabia o que era assédio. Eu achava que assédio era estupro. Aprendi agora, com as meninas, com essas campanhas em rede. Tem uma diferença aí grande. Eu sou da 3ª onda, da academia, das instituições. Eu era ativista contra a ditadura. Como eu falei, quem era de esquerda, ia pro exílio. E elas voltavam com essas ideias feministas. Teve uma evasão grande.

Durante sua apresentação no Seminário você trouxe o panorama de feminismo brasileiro e mencionou que está para emergir a quinta onda do feminismo, mas não adentrou no que viria a ser.

Eu acho que a gente vai entrar numa discussão braba decolonial pra fazer um feminismo brasileiro ou latinoamericano-Brasil, porque está muito forte isso, se pensar um modelo teórico que não seja europeu, que não seja branco. Isso tá muito demais. Então eu acho que isso vai entrar fundo, porque vai juntar as mulheres. A quarta onda é um momento de marcação de posição. Claro. Mas eu tenho a impressão de que a situação está tão estranha no Brasil e no mundo, dessa onda conservadora gigante, que eu acho que as mulheres vão se unir para peitar uma transformação ainda maior. Lutar pela igualdade social, pelo meio ambiente, por causas além dos direitos das mulheres. As identidades vão carregar essas outras conversas. Acho que não se abre mão da identidade. É a mulher no meio ambiente, a mulher na discussão das diferenças, a mulher na diversidade social.

Uma coisa que você mencionou rapidamente foi em relação à diferença entre passeata e ocupação, e o paralelo entre as redes digitais.

A hashtag parece uma guerrilha. Uma marcha tem causa, tem o deslocamento pelas avenidas, aquela coisa. E a campanha não, é um estouro aqui, ali. São muitos Eus, você fala em primeira pessoa. Você não diz mais as mulheres, você fala da sua experiência e aí abre caminho para outras histórias.

Qual é a perspectiva para os estudos feministas?

Acho que os debates vão migrar para os estudos decoloniais. Ou seja, feminismo decolonial. Que é o feminismo que vai buscar na sua própria história os modelos de mulher. Por que eu estou publicando isso agora o pensamento feminista hoje? Que é uma série de três. É interessante porque o movimento queer daqui é diferente. É cuir [3]. O queer dos Estados Unidos não é o mesmo do nosso. A gente está cruzado por outros mil problemas. Não é o mesmo do queer da Judith Butler. O nosso cuir é atravessado pela questão racial, social, isso é que vai ser a coisa teórica. Estou fazendo a antologia nesse sentido.

Mas quanto a perspectiva desses estudos nessa conjuntura política?

Acho que eles vão ampliar porque isso é o que nos faz agoniar.

É uma perspectiva otimista…

É sim. Desses movimentos de transformação têm dois que precisam ser ressaltados: o feminismo e o meio ambiente. Na Europa, o partido do meio ambiente é a oposição, não é a esquerda. Eu acho que o feminismo e meio ambiente vão carregar o que era a esquerda antigamente. A esquerda está desconstruída. Aqui e em todos os lugares. Está difícil de aparecer com um projeto. Está com cisão, está com debate, está muito acuada. Essa onda (conservadora) tomou conta. Acho que o que pode emergir como uma nova esquerda é a pauta ambientalista. São essas duas grandes potências. Ambientalista tem projeto, e é projeto grave. O das mulheres também é grave.

Deixo aqui algumas sugestões de leituras complementares que dialogam com assuntos da entrevista (sim, à moda Isadora):

[1] Sobre a metáfora das ondas, artigo Talking Waves: Structures of Feminist Moments and the Potential of a Wave Economy de Emily Hoeflinger (2008).

[2] Vale a pena dar uma sacada no projeto Poetics of Space (2017) que investiga os artefatos efêmeros da retórica ativista e se propõe a examinar as ondas do movimento feminista estadunidense.

[3] Para pensar outros cuirs e descolonização de gênero: Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma, de Hija de Perra (2014).

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Isadora Lira

Jornalista e pesquisadora. Escrevo sobre o que me incomoda, quando posso (porque preciso). SAC: yzdrrr@protonmail.com