O outro lado do espelho

Isadora Lira
2 min readMay 31, 2021

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Sem qualquer rigor quanto ao horário, saio para pedalar no mesmo trajeto diariamente. Em um desses dias, cedo da manhã, avistei uma conhecida na parada de ônibus. Sabia que morava perto da minha casa e acho que cursou faculdade no mesmo período que eu. Não lembro bem porque, mas somos adicionadas nas redes sociais. Ela estava sentada, usava a máscara de tecido fino abaixo do queixo, enquanto passava um batom segurando seu celular. Ou tirava uma foto que mais tarde eu veria postada. Como se eu estivesse do outro lado do espelho, e na verdade, passei diante dela. Silenciosa e imperceptível. Mas seria notada como um registro se curtisse aquela imagem.

Por alguma razão, lembrei-me de uma vez que acompanhei minha mãe em uma consulta e a médica usou seu próprio celular como lanterna para iluminar a garganta inflamada de minha mãe. No meio do trajeto, alguns galhos caídos poderiam indicar um acidente. Pausei, olhei adiante e segui com cautela. Por certo já havia sido resolvido.

O pior, certamente, foi quando outro médico me mostrou as fotos da cirurgia que havia feito na minha mãe. Esses registros médicos eternizados numa nuvem me causam arrepios. Passei tempos imaginando as galerias de fotos dos celulares de médicos. Os corpos de entes queridos abertos, etéreos no fluxo infinito e inapagável da vigilância cumulativa característica deste tempo. Em algum lugar, há o registro daquela infecção generalizada ocorrida há meia década. Acontecimentos que se esvaem enquanto memória, mas mantém uma certa capitalização, monetarização, num ciclo infinito de coleta e processamento de informação. Dados sobre disposição e forma de carcinoma neuroendócrino. Dados sobre formatos de dermatite por alergia medicamentosa. Ao meu redor, pessoas conversavam o que pra mim era inaudível. Considerei perguntar a mim mesma “mas esses dados não poderiam ser usados para salvar vidas?”. Desconfio que não. Apenas para prover a quem estava lá, do outro lado do espelho. “Do outro lado de tudo, a matemática do absurdo”

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Isadora Lira

Jornalista e pesquisadora. Escrevo sobre o que me incomoda, quando posso (porque preciso). SAC: yzdrrr@protonmail.com