Uma certeza de sertaneja

Isadora Lira
4 min readApr 26, 2022

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Passei alguns dias no meu sertão e voltei de coração aquecido, pele descascada e um punhado de indagações. Durante três dias, Cajazeiras recebeu a primeira edição do Mulherio das Letras no Sertão. Na ocasião, pude ouvir Maria Valéria Rezende e tantas outras autoras sertanejas publicadas na antologia Ritos e Versos para o fim do mundo, lançada no evento pela editora Arribaçã.

Ritos e Versos para o Fim do Mundo

E então, encafifada, voltei para a capital com aquela dúvida que move escritoras, artistas, pesquisadoras e demais viventes Brasil adentro: afinal, o que é ser sertaneja?

(Adianto às pessoas ansiosas que não tenho a pretensão, capacidade nem audácia necessárias para sanar tal questão).

Se ser sertaneja é vir ou viver no sertão, onde que ele começa e onde termina? E seria esse um fator determinante para falarmos sobre esse espaço-memória-cultura?

Venho de Cajazeiras, cidade pertencente à antiga mesorregião do Alto Sertão, cuja categoria foi extinta em 2017 pelo IBGE. O “alto” aqui se refere à distância do litoral, quase 500km. Essa, inclusive, é uma das muitas possíveis definições e hipóteses da origem do termo “sertão”: uma derivação de muceltão, que de acordo com Barroso (1947) se refere a lugar entre terras, sítio longe do mar, mato distante da costa”. Ainda no século XVI, os colonizadores já se referiam a uma região denominada “sertaão”.

Ou seja, o sertão antecede o Nordeste.

Outra hipótese é que o termo seria uma derivação de “desertão”, uma perspectiva colonialista sobre um pedaço de terra despovoado, desconsiderando a existência dos muitos povos indígenas que desde Pindorama habitam a região.

A vista do Açude Grande pela janela da casa na qual me hospedei

O clima semiárido do sertão e a caatinga eram, para Euclides da Cunha, de um “aspecto estranho e atormentado da terra” nesse lugar no qual “não se podia fixar”. De desértico a indomável, as palavras estrangeiras que descrevem o sertão não lhe são mais gentis que as estiagens.

A paisagem árida, com vegetação acinzentada e escassa, céu dolorosamente azul, se transforma nos primeiros pingos d’água naquele verde exuberante. Surgem açudes, que sangram e juntam gente. E assim, aprendemos desde cedo que a vida se camufla. Os galhos secos estão vivos e sabem sobreviver.

Então ali, no Mulherio das Letras no Sertão, estávamos nós ouvindo Maria Valéria Rezende narrando como surgiu o Mulherio: de um grupo de escritoras que perceberam a discrepância entre público leitor e escritores convidados a palestrar em outros eventos literários. Daí juntamente a outras escritoras fez-se o primeiro Mulherio das Letras na capital paraibana, ainda em 2017. O povo todo se aconchegava na secretaria de cultura de Cajazeiras enquanto a chuva se antecipava, como se forçasse a botar todo mundo pra dentro pra ouvir melhor o que dizia Maria Valéria Rezende, a história viva que se fez presente.

Maria Valéria Rezende e Veruza Guedes

O feito não se repetiu nas mesas seguintes. Foi simbólico sair de uma das rodas diurnas e avistar um grupo só de homens, em círculo, do lado de fora do evento, como se precisassem evidenciar que a escrita das mulheres não é de seu interesse.

Maria Valéria disse que nasceu escritora quando fincou raízes na Paraíba. E descreveu quando primeiro viu a transformação da caatinga após uma chuva. É a poesia em seu estado bruto. E, pela primeira vez, me ocorreu pensar na força do sertão como algo que remete ao feminino. Já se sabe que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Mas talvez seja a sertaneja que melhor entenda das transmutações e ciclos da natureza para sobrevivência, que multiplique afluentes, e, indomável, escapa às limitações fronteiriças.

Assim, o mulherio se tornou um rio de escritoras, leitoras, mulheres, trans, cis, travestis, que se somam sertões adentro. Minha única certeza de sertaneja é que são muitos esses sertões.

Agradeço à produção do Mulherio: Veruza Guedes, Lua Lacerda, Tainara Silva e Mirian Guedes. Mulheres que sangraram o açude com a força desse encontro. Foi emocionante voltar em Cajazeiras para um evento literário após anos de afastamento por causa da pandemia.

Algumas referências:

Nordeste, sertão e semi-árido. https://www.youtube.com/watch?v=f8YQEzQsubY

Sobre a palavra “sertão”: Origens, significados e usos no Brasil (Do ponto de vista da ciência geográfica) — https://www.agbbauru.org.br/publicacoes/revista/anoXV_1/AGB_dez2011_artigos_versao_internet/AGB_dez2011_11.pdf

E demais conversas com sertanejes que afluem e influem em minhas palavras: Thayse Dias, Aline Ramos, Luana Silva, Hyollita Araújo, Adriano Araújo, Joicy Oliveira, Rondinelly Medeiros.

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Isadora Lira

Jornalista e pesquisadora. Escrevo sobre o que me incomoda, quando posso (porque preciso). SAC: yzdrrr@protonmail.com